Na entrevista ao Notícias ao Minuto, Sara do Vale, da Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto, garantiu que o que se está a passar com o fecho de vários serviços de urgência de obstetrícia e ginecologia é uma “crónica de uma tragédia anunciada”.
Desde que agosto começou, os telefones e e-mails com pedidos de ajuda não se têm ‘calado’. O caos no Serviço Nacional de Saúde (SNS) e o fecho das urgências de obstetrícia e ginecologia têm levado várias dezenas de grávidas a procurar o apoio da Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto (APDMGP).
“Não sabem se vão para o privado, se vão para público. Agora os nossos telefones, os e-mails, os pedidos de ajuda não param. E isto não está a afetar apenas o momento do parto – que é um momento tão importante e vulnerável para a família – está a afetar a própria vigilância da gravidez. Há muitas pessoas a querer fazer denúncias e queixas.
Não se têm sentido bem tratadas. Têm-se sentido apressadas e ignoradas nos serviços. Os profissionais fazem o melhor que podem, mas não têm mãos a medir”, revela ao Notícias ao Minuto Sara do Vale, co-fundadora e membro da APDMGP.
O caso da mulher que sofreu um aborto nas Caldas da Rainha, cuja assistência foi recusada, devido ao facto do serviço de urgência de obstetrícia e ginecologia do hospital da cidade estar fechado, é apenas “um exemplo do que se está a passar”.
“Se a urgência não estivesse fechada isto não teria acontecia. É o sintoma de um problema que se tem vindo a agudizar ao longo dos anos. As inconveniências sazonais passaram a permanentes e como é óbvio que nos meses de verão a situação ainda complica mais.
É completamente inadmissível que uma pessoa com uma hemorragia grave, potencialmente mortal se se agravasse, não fosse atendida”, realça a responsável.
“A crónica de uma tragédia anunciada”
Para Sara do Vale o fecho dos serviços de urgência de obstetrícia e ginecologia não é sequer legal, uma vez que é “uma violação dos direitos das pessoas ao acesso à saúde”.
“Não é legal porque se as pessoas não têm acesso aos cuidados de saúde é de facto muito complicado. É como se houvesse uma negação de cuidados. Esta questão de ir a uma maternidade mais próxima não resolve os problemas.
Tem havido um desinvestimento progressivo no SNS e não é de agora, aconteceu no Governo anterior e no outro também”, afirma, acrescentando, contudo, que, apesar de chocada, não está surpreendida com o caos que isso tem gerado.
“É a crónica de uma tragédia anunciada e é lamentável. Acabou de sair uma notícia a dizer que durante três dias não vai haver uma única urgência obstétrica aberta na zona de Setúbal. Todas as grávidas da Margem Sul vão ser atendidas em Lisboa.
Daqui a bocado temos o país inteiro a parir na Maternidade Alfredo da Costa. Vai ser preciso realmente acontecer uma desgraça para abrirmos os olhos e compreendermos a gravidade da situação?”, atira.
Serviços de obstetrícia abertos em sobrecarga
À associação têm chegado não só pedidos de ajuda como muitas queixas de grávidas que viram os seus “exames de rotina a serem cancelados ou adiados por muito tempo porque agora a prioridades dos hospitais é fazer fase à afluência das urgências”.
“Pessoas que não tiveram ecografias, exames importantes, pessoas com anemia que não vão ter assistência a não ser muito perto do parto, porque os hospitais que se mantém em aberto não têm mãos a medir com a enorme afluência.
As estruturas e o número de profissionais não estão preparados para este tipo de situação. Quem está no primeiro trimestre simplesmente não consegue consulta no SNS, tem de ir ao privado e lá está, se nós pensarmos nas ecografias obstétricas, principalmente nos dois primeiros trimestres, elas têm um período muito específico para acontecer.
Há certos indicadores e coisas que se vão medir que tem de ser naquela altura e quando as coisas se atrasam pode haver situações que passam despercebidos e mais tarde não conseguem ser resolvidas”, sublinha ainda.
Solução pode estar nos enfermeiros especialistas
Para que não aconteça uma tragédia, é preciso, por isso, segundo Sara do Vale, “acabar o mais depressa possível com o rácio necessário para manter as urgências obstétricas”.
“Não temos necessidade de ter um número de obstetras que não é equiparável por exemplo aos nossos vizinhos da Europa do Norte. Nesses países, o que está a acontecer é que os enfermeiros especialistas em saúde materna e obstetrícia tomam conta de tudo o que seja vigilância da gravidez e parto de baixo risco”, explica a responsável, garantindo que o “que está a manter as urgências fechadas, é a quantidade de obstetras necessários para manter as urgências abertas”.
Para isso é preciso, tal como a Ordem dos Enfermeiros já propôs ao ministério da Saúde, “promover a independência dos enfermeiros especialistas”.
A APDMGP defende ainda um “investimento em profissionais que são residentes no serviço e não tarefeiros”, uma vez que isto “está a escoar dinheiro da saúde que deveria ser investido em infraestruturas e numa equipa residente fixa no SNS”.